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Arquivo Diário 26 de novembro de 2018

Posicionamentos internacionais sobre a Carta de Astana

No final do mês passado (25-26 outubro), em Astana, Cazaquistão,  o governo local, com a colaboração da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), recebeu a Conferência Global sobre Atenção Primária à Saúde. O produto, já bem conhecido, desse encontro, foi a Carta de Astana, uma “renovação do compromisso político  com a atenção primária à saúde” (nas palavras da OMS) realizado quarenta anos em Alma Ata, no mesmo Cazaquistão. Logo após a Conferência, vários encontros e declarações trouxeram os posicionamentos de diferentes países e atores sobre esta iniciativa.

Como muitas outras questões ligadas à saúde, a iniciativa de revisar a Carta de Alma Ata foi polêmica, recebendo reações radicalmente opostas por diferentes países e atores. Apresentamos aqui os posicionamentos dos atores presentes num encontro organizado pelo Centre for Global Development (CDG), um think tank dos Estados Unidos, que hospedou representantes do Pakistão, Etiopia, Liberia, ademais do Banco Mundial, da própria OMS, e outras organizações e iniciativas privadas; o parecer da ex-ministra da saúde do Equador, e atual diretora do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, Carina Vance; e o posicionamento da Associação Latinoamericana de Medicina Social (ALAMES).

O primeiro posicionamento originou num evento intitulado “Fazendo acontecer a atenção primária à saúde: das aspirações à realidade” (Making primary health care happen: from aspirations to reality). Neste caso o posicionamento dos atores presentes foi, aparentemente, em concordância com a mesma Conferência. De fato, apesar de ter sido inspirado pelo lançamento da nova Carta da APS, este evento quase não discutiu o conteúdo dela, deixando inferir completa anuência. Amanda Glassman, COO (Diretor de Operações) do CDG, opinou que a iniciativa foi uma tentativa de trazer a APS de novo para a agenda [dos doadores? Dos governos?], por ter sido descuidada nos últimos tempos. Evidentemente o posicionamento desta organização, localizada no Distrito Federal de Washington, Estado Unidos (EEUU), é fortemente alinhado com as percepções dos “doadores”, agora na moda de ser chamados de “parceiros”: as grandes organizações privadas (tipo Clinton Foundation), ou nacionais (tipo USAID), que tentam dirigir as escolhas de governos de países capitalistas periféricos dependentes com a “sedução” do dinheiro. O propósito deste encontro, então, se não de apreciar criticamente a nova declaração mundial para a APS, foi de determinar como, na prática, chegar a desenvolver as “aspirações” da Carta de Astana. De fato, o moderador do primeiro painel, quem resumidamente leu os objetivos da declaração, concluiu que eram muito ambiciosos, idealísticos, e que ficou pouco claro como se alcançariam. Previsivelmente, o discurso dos atores presentes, tanto “doadores” como “beneficiários”, sobre como fortalecer a APS centrou-se nas dinâmicas de financiamento por resultados, e o monitoramento externo de indicadores de desempenho. Até chegaram a trazer o Brasil como exemplo, por sua bem sucedida experiência com a APS, que porém enfrenta o problema dos servidores públicos que trabalham também no setor privado. Outro discurso prevalecente foi o da eficiência na alocação de recursos, e a necessidade de vontade política. Os interesses do mercado, obviamente, não foram mencionados, embora se enfatizou o que o setor público pode aprender do setor privado.

O posicionamento da ex-ministra da saúde do Ecuador foi bem no outro lado do espectro: Carina Vance defendeu a importância e a “vigência plena da Declaração de Alma Ata”. Vance ademais relatou como esta questão foi abordada diferentemente pela comissão regional formada-se a raiz dum evento sobre os 40 anos de Alma Ata, organizado pelo governo de Equador e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), por um lado, e o grupo internacional montado pela OMS para a Conferência em Astana, pelo outro lado. No primeiro se defendeu a integralidade da APS, que tem que ir além da provisão de serviços de saúde, para incluir a atuação sobre os determinantes sociais de saúde, e a regulação do setor privado por parte do Estado. Do segundo grupo a ex-ministra denunciou a virtual ausência da sociedade civil, representada apenas pelo Movimento pela Saúde dos Povos (People’s Health Movement), e predominantemente por organizações privadas de atuação internacional (como a Bill & Melinda Gates Foundation). Como apontaram as integrantes da Rede APS que estiveram no Cazaquistão, Vince declarou que “a Declaração de Astana não chega nem perto de alguns conceitos que estão em Alma Ata”. De fato, esta iniciativa representou, no seu olhar, um retrocesso: fala de serviços essenciais, nenhum mencionamento dos interesses comerciais do setor saúde, e a ativa exclusão do termo regulação (do setor privado), demandada pelos EEUU. A ex-ministra identificou que a visão propagada pela Conferência de Astana “é que [a Declaração de] Alma Ata era muito utópica, muito inocente. […] daí a necessidade de substituí-la por um documento alinhado ao discurso hegemônico”.

Similarmente se posicionou a ALAMES, em contra da ideia mesma de escrever uma nova Declaração: se ainda não conseguimos os objetivos de Alma Ata, perguntam, qual a necessidade de formular um novo compromisso? Além disso denunciaram como a formulação mesma da Carta de Astana, que encaixa a APS no centro da Cobertura Universal em Saúde (CUS/UHC), representa um retrocesso, que busca restringir o significado mais amplio da saúde coletiva/pública à provisão de serviços. Subsequentemente argumentaram em contra de algumas alegações expressas pela nova Carta, entre elas: a asserção de ter hoje mais probabilidade de êxito que nunca – desconstruída pela ALAMES ressaltando tanto o pior que estão as condições políticas atuais, quanto a concentração de riqueza que causa um desiquilíbrio  nas relações de poder dos governos com o mercado; e a responsabilidade pela saúde compartilhada entre o setor público e o setor privado – destacando a ingenuidade de querer “colocar a raposa no comando do galinheiro para que não se coma [as galinhas]”. A Associação chegou até definir a mesma Declaração de Alma Ata como insuficiente, mas, por agora, um mapa necessário para guiar a atuação de miles de trabalhadores do campo da saúde e das comunidades nas quais operam. Pedem, então, de manter o foco sobretudo nos componentes políticos da Carta de Alma Ata, concedendo uma revisão desta só quando estiveram alcançados estes objetivos: a participação social, a interculturalidade, o protagonismo e advocacia dos trabalhadores da saúde, e a intersetorialidade.

Por Diana Ruiz e Valentina Martufi – doutorandas que contribuem para a Rede APS